Mamãe me passou o sal delicadamente, em sua mão de unhas muito bem feitas. Ela estava perfeita em seu vestido entalhado de pedrinhas brilhantes. Seus cabelos presos num luxuoso coque em sua nuca e uma tiara. Mamãe nunca me pareceu tão linda como agora. Neste momento de família em que nós nos sentamos à mesa e comemoramos a data especial. Eu sorri.
Ao seu lado, estava meu adorável irmão. Ele estava com mais espinhas do que eu me lembrava da última vez que o vira. Mas eu nunca o vejo direito. Eu quase nunca estou ali, mas este dia é especial, porque é Natal.
Eu trabalho de segunda a sexta, das oito até as seis, com meia-hora, talvez uma, de almoço. Não é muito, mas dá para comer algo, ou não comer, se eu ainda desejar entrar na linda calça 36 que eu vi na Dazlu. Ela está em meu armário agora, ao lado do espelho e com um bilhete “Deixe de ser obesa!”. De mim, para mim mesma. É assim que as coisas funcionam.
Papai sorriu quando nossos olhares sem cruzaram naquela mesa onde nós quatro estávamos em paz. Era Natal e tudo estava na comovente paz. Nada de estar em meu apartamento sombrio, sozinha e solitária. Nada disso, eu estava em família, com meus adoráveis parentes que jamais me criticariam.
Eu cresci bem. Uma família amável e caridosa. Mamãe me levou para a escola no meu primeiro dia e me disse amavelmente que se eu chorasse, eu não teria sobremesa no jantar. E eu não derrubei uma lágrima sequer. Nenhuma.
Quando eu estive na quinta série, papai me acompanhou, me levando até a porta da sala. As outras crianças gozaram da minha cara, mas tudo bem. Tudo estava bem porque papai estava ali, ao meu lado, me dando toda a sua força vital. Força de papai foi mais que o suficiente.
Quando eu estava no médio, os dois não me levaram para a aula. Eu fui sozinha, pegando o ônibus errado e chegando atrasada no meu primeiro dia. Mas tudo bem, dava para viver com isso. Eu podia viver. Eu não tive a força de papai ou a amabilidade de mamãe, mas eu estive bem, porque foi naquele primeiro dia em que eu pousei os olhos no meu primeiro namorado de verdade. E nós ficamos juntos até a faculdade.
Quando eu estive na faculdade foi igual ao ensino médio. Eu estava sozinha. Só e por minha conta. Não que eu já não tivesse me acostumado com isso. Eu tinha, sem ressentimentos. Mas foram anos na faculdade de Direito. E então eu me vi livre. Livre para viver a minha vida como uma mulher quase completa.
Eu tinha o meu apartamento, o meu carro. Eu tinha tudo. Ou quase tudo. Eu não tinha alguém para voltar no fim do dia e beijar na ponta dos pés. Eu não tinha um lindo e maravilhoso Orlando Bloom para me colocar na cama e fazermos sexo como animais até o amanhecer e eu me lembrar que preciso trabalhar.
Eu não tinha. Era isso que faltava em minha vida perfeita.
Um lindo marido que me levaria para os céus toda vez que nós estávamos na cama. Eu não o tinha comigo, mas está tudo bem, porque eu sei que um dia, ele virá me encontrar num bar chique, se oferecendo para me pagar um drink, e então ele me levará para sua casa e tirará minhas roupas delicadamente, e dirá que me adora, e adora meu corpo de anos de dieta e exercícios físicos. Ele dirá que ama os meus fios avermelhados, cobre, e nós ficaremos acordados em sua cama até o amanhecer.
E ele será o príncipe de minha vida. Dando-me tudo o que eu desejo, ele será rico, e nós passearemos pelo mundo. E então, nós teremos lindos filhos.
Mas tudo quando ele vier me encontrar num bar.
Nossa música preferida será Smooth, do Santana, e ele a cantará para mim, ao pé do meu ouvido, com sua voz linda e melodiosa. Ele me dará o mundo para me deixar feliz. Simplesmente como a música me diz. Ele me dará o mundo.
E nossas crianças serão lindas, puxarão o pai, e de mim terão apenas os olhos verdes. Cabelos negros, lindos, meus lindos bebês.
Eu ouvi papai dizer meu nome e me obriguei a voltar para a mesa. Para a ceia.
- Como vai o escritório? – ele dizia, orgulhoso de sua filhinha.
- Vai bem, papai. Está tudo nos eixos e estou prestes a encerrar um caso que fará de mim conhecida e me dará status. – eu lhe respondi, sorrindo enquanto levava um pedaço pequeno de peru à boca. Tudo em meu prato era milimetricamente calculado, eu não poderia engordar. A salada com macarrão de mamãe. O tender com pêssego e ameixas. Tudo tão bem preparado que me dava dó comer só um pouco de cada. Mas tudo pelo bem de minha estética.
Mamãe sorriu feliz, se inclinando na mesa para me apertar a bochecha. Eu estava feliz, era Natal. Meu irmão estava em sua cadeira, ao meu lado, quieto como qualquer adolescente de quinze anos. Eu sei que ele queria estar longe dali, mas não, ele estava ali. Com sua família adorável. E magnífica.
Eu tomei um gole de meu vinho tinto. Quase transparente em minha taça de cristal, mamãe sempre escolhia os melhores copos, melhores pratos e melhores talheres para essas situações.
A toalha limpa e branca na mesa de mogno. As velas acesas no candelabro e as luzes quase apagadas, fracas. A luz da lua entrava por uma das janelas e fazia a sombra do gato no chão. Meia noite, esse era o nome dele, preto como a meia noite. Sentado formalmente no móvel onde mamãe guarda seus preciosos itens de cozinha. E meia noite apenas nos observava com seus olhos amarelos de verão.
Nós conversávamos sobre casualidades. Sobre notícias de TV, casos que apareciam na mídia. Eu sorri.
E em menos de uma hora, nós estávamos na sala, ao redor da grande e branca árvore de Natal. As luzes coloridas ao redor dela combinavam com seus ornamentos também coloridos. Caixinhas de presentes, bolinhas coloridas e brilhantes, anjos e sininhos. E lá no alto, estava a linda e grandiosa solitária estrela dourada. Papai me dizia que eu era aquela estrela.
Nós trocamos presentes, fazendo o mesmo de sempre, dizendo as qualidades daqueles que estávamos presenteando ao lhe dar o presente.
- Ao homem que fez de mim o que sou hoje. Ele é gentil e generoso, e sempre esteve lá quando eu precisei dele. Para você, papai. – eu disse gentilmente, lhe entregando um embrulho azul marinho.
Ele me deu um forte abraço e um beijo na testa antes de se sentar em sua poltrona de couro negro e começar a abrir o presente. Ele sorriu alegremente quando encarou a coletânea dos Beetles junto com uma miniatura de John Lennon.
- Ao meu querido pirralho, sempre me deixando atrapalhar suas matanças no vídeo-game.
Meu irmão levantou-se ansioso e retirou o presente de minhas mãos, me deixando beijá-lo e abraçá-lo fortemente.
Ele encarou maravilhado o seu novo Nintendo Wii, em sua linda caixa branca. E me abraçou fortemente, murmurando uma série de obrigados. Eu sorri.
- À mamãe, que sempre me deu apoio, que me fez a mulher que eu sou hoje.
Eu lhe dei o meu penúltimo embrulho. Era um lindo estojo de maquiagem. Com tudo o que ela queria.
Eu sorri e agradeci a todos quando recebi os meus presentes. Papai me dera um cachecol com as minhas iniciais em dourado sobre o tecido negro. Mamãe me comprara um vestido lindo, vermelho e provocante. Sexy, seria ele que eu usaria no dia do encontro com meu futuro marido. E meu irmão me presenteou com uma presilha de cabelo. Não era uma qualquer, era rodeada de strass, e sua forma prateada me mostrava uma borboleta. Eu me apaixonei por ela no instante em que a vi.
Depois de tirarmos a mesa, mamãe e Lucas, meu irmão, foram para cozinha e trouxeram a sobremesa. Um mousse de chocolate, torta de limão caseira e um pavê. Eu comi apenas um pedaço de cada. Mantendo em mente a calça da Dazlu que eu queria entrar e que me custara os olhos da cara.
E então chegou a hora de dar boa noite.
Nós fomos para nossos quartos, nos despedindo alegres e levemente bêbados. Ao deitar em minha cama macia, eu adormeci instantaneamente.
~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~
Valentina sorria bobamente. Sozinha em seu apartamento no centro. A mesa estava posta para quatro pessoas, mas só uma estava ali, definitivamente ali. As outras três eram meros espectros. Prateados e levemente perolados. Felizes como ela.
Em seu prato estava uma linda maçã muito vermelha e em sua taça havia champagne. A casa estava escura e somente a luz da lua iluminava aquela sala de jantar quase vazia. Era apenas a mesa, um tapete e um pequeno bar. A sala de estar tinha apenas uma estante com TV e um sofá confortável.
Mas ela não parecia se importar com a falta de móveis e decoração. Estava tudo bem, porque era Natal.
Valentina cortava sua maçã com a faca e levava os pequenos pedaços à boca com o garfo de prata. O champagne adoçava a refeição casta e lhe dava um gosto especial. Um gosto quase de casa. Ela sorriu. Os fantasmas ao seu redor comiam suas maçãs podres calmamente, e bebiam de suas taças vazias. Eles trocavam elogios mudos, Valentina falava sozinha e não percebia isso. Sozinha em sua sala vazia.
A quase ruiva terminou sua maçã, pegando todos os outros pratos vazios e se encaminhando para a cozinha igualmente casta de móveis. Apenas o básico para sobreviver. Uma geladeira, um fogão e um armário com pouca comida. Ela colocou os quatro pratos na pia, e então pegou os de sobremesa, e levou-os para a sala de jantar. E então ela serviu o doce deles. Deles como ela via. Dela para a solidão. Um cacho de uvas para cada. Valentina sorria docemente, quase debilmente.
Ela continuou a encher a sua taça de cristal com o champagne que aos poucos chegava ao fim. As uvas se foram aos poucos, terminando a ceia daquela família incompleta. E ela continuava a sorrir. E então, quando sua majestosa sobremesa terminou, ela se encaminhou para o sofá. Onde havia uma pequena pilha de presentes. Alegremente, ela se pôs a abri-los, encantando-se com as caixas vazias.
Vazia de sentimentos.
Embrulhos rasgados por todo o chão, fitas jogadas por todos os lados, e ela encarava as três caixas negras, vazias, com um brilho no olhar. Estava feliz, realmente feliz. E então, roubando a garrafa da mesa, ela se despediu de seus parentes translúcidos e perolados. Cada um lhe disse boa noite de forma muda e ela se contentou mesmo assim. Os últimos goles do champagne foram quando estava na escuridão de seu quarto igualmente casto. Uma única cama de casal, uma poltrona, pequeno armário e só.
A cortina branca lisa esvoaçava com a brisa fria. A mulher possuía lágrimas no rosto, e ao adormecer, a garrafa ficou em seus braços. Como o único acessório que faltava para sua roupa. Sua ceia especial.
A brisa levou algumas folhas de um jornal sobre a poltrona, como se quisesse lê-lo. E parado na página sete, viu-se uma pequena notícia intitulada “Tragédia de Natal”. A reportagem de poucas linhas contava o acidente que acontecera naquela manhã, do dia vinte e quatro de dezembro, quando um carro colidiu com um caminhão na estrada. Saindo do interior para a capital. Um homem, sua esposa e o filho adolescente.
Todos mortos.
Os translúcidos parentes sorriam alegremente na sala. Cada um em sua caixa negra. Parados, encarando o nada. Translúcidos. Perolados, lindamente perolados. Os fantasmas apenas encaravam o nada. E sorriam, em pedidos mudos para que o nada e o vazio das caixas fizessem parte deles.
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Ren.