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Coração de Inverno
7.05.2010 @ 11:55

Eu tranquei a porta de minha casa e caminhei pelo hall de meu andar, odeio esperar pelo elevador. Em um prédio de tantos andares o certo seria haver mais de dois, mas quem dá ouvidos? Ninguém. Dois minutos esperando e então o elevador da esquerda chegou. Vazio, maravilha. Apenas o eu do espelho e eu. Sorri e ele me sorriu de volta. Respiramos fundo, ele sabia exatamente meus movimentos, não é? Afinal, nós somos nós. Andar térreo, caminhei pelo hall dos elevadores, pelo corredor que levava à sala de espera e então, depois de vários metros, cheguei à entrada e logo à portaria. A chuva caia aos poucos, eu pude perceber.

Mesmo com aquele grosso casaco de inverno, eu senti frio. Meu cachecol negro me cobria o pescoço do frio, mas não cobria minha alma fria que eu nem mesmo sabia onde ficava. Sorri levemente ao retirar o maço de cigarros do bolso. O porteiro me acenou, com um leve sorriso, acenei de volta. Acendi aquele cigarro de filtro vermelho no instante em que me vi fora daquele grande prédio onde morava. Sentia-me mais livre, como liberto de uma prisão após anos. A fumaça azul me envolveu o rosto, entrando em meus olhos, eu tive vontade de chorar. Mas apenas sorri, eu estava vivo, não é?

A chuva caia aos poucos, chuviscava, para dizer a verdade, mas aquele casaco cinza me protegia das gotas geladas. Sorri ao pensar na agulhada que receberia se alguma gota de chuva caísse em meu rosto, frio em pleno verão, não é? Por quantas ruas eu andei? Eu não sei, é a resposta. Meus pés me levaram para um Shopping Center, e eu nem mesmo sabia o nome. Olhei para o meu cigarro de filtro vermelho, seria o último antes de entrar naquele local de lojas. Uma última tragada e ele foi ao chão, esmagado por meu pé. Adeus, ó causador de câncer, foi um prazer tê-lo em meus pulmões, fodendo-me.

Ri internamente, entrando naquele enorme estabelecimento. As pessoas corriam de lojas em lojas, gastando todo o dinheiro que acumularam o ano inteiro. Gastando com presentes desinteressantes para pessoas que mal tinham contato. Filhos dos irmãos, primos, irmãos. Pessoas mantendo expectativas de que ganhariam algo interessante. Eu já não me iludia com isso. Meu crime passional. Sorri, caminhei por aquelas lojas por vários minutos, indo de andar em andar e então eu estava na área de alimentação. Um segundo para avaliar se estava com fome. E eu estava. Peguei uma daquelas filas enormes que só aquela famosa franquia de fast food tem, meu lanche como qualquer outro.

A coca-cola, a batata frita, o hambúrguer e a torta, a maravilhosa torta de maçã. Só faltava um cigarro ali. Por vários minutos procurei uma mesa, em vão até que um casal apaixonado desocupou e eu pude me sentar, para ao menos comer em paz. Erro meu, as pessoas nunca param de falar. Muito menos quando comem. Comi lentamente, saboreando cada centímetro daquele lanche de quase quinze reais, ouvindo o que os meus vizinhos de mesa diziam. “Com licença, esta cadeira está ocupada?” uma mocinha me perguntou. Seus quinze anos e seios maiores do que os de minha ex-namorada. Bonita, longos cabelos castanhos que tinha cachos nas pontas. Sorri docemente “Não. Pode levar”.

Ela sorriu docemente “Obrigada” e se afastou de mim, observei por alguns instantes aquele corpo de mulher num rosto de menina. As meninas de hoje em dia passavam o dia na academia malhando. Usavam as maquiagens das mães, roupas, sapatos. Dos onze aos treze anos elas já não eram mais as garotinhas dos papais. A vida muda tanto e essas garotinhas vivem para os garotos ao redor. Tão bonitas em suas faces, mas tão bebês em suas mentes. Elas crescem rápido demais... Tive que suspirar e olhar para outro lugar, não queria que ela me pegasse olhando-a. Quem gostaria de ter um cara de quase trinta anos lhe encarando? Poderiam achar que eu sou um tarado.

E mais uma vez “Esta cadeira está ocupada?”. Agora era uma menina mais velha, talvez dezoito anos, ou seus dezessete. Cabelo descolorido em um loiro bem claro e um piercing de argola negra no nariz. Do tipo que adora bancar a diferente... Calças extremamente apertadas, blusa branca com sutiã negro por baixo. E uma jaqueta jeans na cor vermelha. O lenço negro em seu pescoço. Alargador na orelha direita, me peguei imaginando em qual mamilo ela teria um piercing... E qual tatuagem seria a da vez. Dragões ou pétalas de flores japonesas? Saindo de minha linha de pensamentos, ergui meu rosto para aquela bonita menina, sorrindo, eu lhe disse gentilmente “Pode levar”.

Ela sorriu, virando-se e levando a cadeira consigo. O grupo de amigos estranhos a aguardavam a algumas mesas de distância da minha, mas eu ainda podia observá-la. Maços de cigarros e várias latinhas de cerveja, lanches da mesma franquia que eu. Coca-colas. Agora não precisava mais olhar para ela, quem precisa encarar menininhas no Shopping? Só os garotos que com elas querem transar. E eu não quero transar com ela. Só quero avaliá-la. Apenas isso. Voltei para meu lanche, a batata frita havia acabado, só me restava o lanche e a Coca-cola. O comi lentamente, saboreando a conversa alheia ao meu redor. Não tenho ninguém para conversar então só me restar ouvir a conversa dos outros. Não é?

Terminei meu lanche e agora só faltava a Coca-cola grande. Tomaria-a andando pelas lojas. Como bom cidadão, reciclei meu lixo e fui para o andar de cima. As pessoas continuavam a ir de loja em loja, comprando presentes para seus entes. Eu ganharia algo também? As pessoas me presenteariam com algo? Seria algo divertido ou algo que eu necessito? Mas isso pouco me importa. Não ligo para as falsidades que aparecem nestas datas dos anos. Não ligo, porque elas machucam. As brigas, os acidentes. A alcoolização. As farras. Não, eu pouco me importo com frivolidades. Por isso eu quero que essas datas se explodam. É, seria bem divertido.

Eu ando pelas lojas, as meninas me olham admiradas. Minha ex havia dito “Seus olhos oceânicos e seu cabelo castanho quase longo fazem de você um quase deus”. Nunca acreditara, nunca me achei bonito, um modelo. Acho-me um cara normal, que fuma muito, que possui um gato persa que pesa nove quilos. Em meu apartamento sou apenas eu e meu gato, meu violão e minha câmera. Guardo meus momentos de tristeza, de felicidade, guardo todos os momentos sofridos, doloroso. Alheios. Sou quase sozinho com meu gato gordo. Eu lhe faço companhia, ele me faz companhia, ambos estamos felizes. E isso é o bastante. No momento, eu não preciso de mais nada. Ou quase nada. Pois então não estaria mordendo o canudo do copo de Coca-cola. Preciso de um cigarro.

Uma loja me chamou a atenção. Loja de animais, se me entende. Meu gato gordo fica sozinho a maior parte do tempo, talvez seja bom para ele ter uma companhia, além de mim. E foi o que eu fiz, entrei naquela loja, procurando por um gato. Qualquer gato que me agradasse. Que agradasse meu gato gordo. E lá estava. Trancado em uma pequena jaula, um lindo gato negro de olhos amarelos. Um gato preto do azar, tão amaldiçoado. Sorri, era tão brilhante seu pêlo. Espesso, longo, seus bigodes brancos e aquele rabo felpudo. Aquele gato seria meu. Aproxime-me de sua jaula, ele me olhou com aqueles olhos amarelos, perfeitos. Poderia até já pensar nos nomes. Apolo para macho e Ártemis para fêmea.

Ártemis era a minha mais nova gata. Com ela naquela caixa de transporte, caminhei por aquele shopping novamente, mas agora eu queria a saída. E minha Ártemis, com um guizo no laço rosa que lhe enrolava o pescoço, como uma coleira. Sorri. Mais um bebê manhoso para me acordar aos domingos. Sorri novamente a me ver naquele vento gelado. Que a nicotina voltasse a meus pulmões! Meu Marlboro novamente em meus lábios, aquela fumaça entrando em meus pulmões, me fodendo aos poucos. Eu não me divirto muito, então eu fumo. Caminhei por várias ruas, várias mesmo, pois estava, relativamente, longe de casa.

E logo eu o vi, aquele prédio de vários andares, o mais alto do quarteirão, da rua. Com a fachada em branco, linhas em vinho. Era até bonito. Mas eu o comprara, o meu apartamento, por motivos profissionais. Eu amo a vista do vigésimo terceiro andar. É a mais fabulosa. E novamente eu estava voltando para aquele lugar. Suspirei, meu último cigarro de filtro vermelho no maço. Também, mal daria para fumar outro, já que eu me encontrava no hall de elevadores, esperando a boa vontade de algum deles aparecer. E o cinzeiro encontrou meu cigarro.

Entrei naquele grande elevador, o espelho me encarava curiosamente, e a minha Ártemis naquela caixinha, logo ela estaria solta naquele grande apartamento em que moro. Sorri e o espelho me sorriu de volta, cumprimentando-me. Vigésimo terceiro andar, e então o meu. Saindo daquele elevador, dei-me de cara com duas portas. A vermelha e a cor de madeira. A vermelha era a minha, por óbvias razões. Peguei a chave no bolso de trás de minha calça, a chave com um chaveiro prateado de guitarra. Bonito, não? Eu sei.

Sorri quando entrei naquela casa e o silêncio me dominou, é isso o que eu gosto, de quietude. Meu gordo gato parado, em frente à porta, esperando-me. Sorri para ele e logo ele se encontrava enrolado em minhas pernas. O típico de gatos que não têm o que fazer a não ser bajular o dono, em busca de algo. Interesseiro, mas fazer o quê? Eu amo esse maldito gato gordo. Ergui a jaula de minha Ártemis, provocando o olhar de meu Schrödinger. Meu gordo gato de cor branca. Peludo, fofo. Sorri, a porta fechada e eu caminhei até o meu sofá de couro vermelho, sintético, é claro.

A jaula aberta e a minha gatinha saindo timidamente, em frente a meu gato gordo. Olhares, atenção, silêncio. E eu apenas observando-os, sentado em meu sofá com outro Marlboro nos lábios. Silêncio e então cada gato para o seu lado, o meu gato gordo subindo no sofá, e agora em meu colo, ronronando. Ele é ciumento, não gostava nem de minhas namoradas. O prazer dele era me acordar de manhã ao pular nelas. E, convenhamos, é duro acordar com um gato de nove quilos pulando em seu estômago. Aposto que ele seria capaz de me quebrar uns ossos.

Deixei meus gatos na sala e passei por aquela parede vermelha. O vermelho sangue. Vermelho vinte e três. Amanhã seria um dia especial, por um acaso da vida, e eu só queria descansar. Deitar, curtir meus bebês felinos...

~ ~ ~

Susto. O ar fugindo de mim tão rapidamente quanto o cair de uma gota num dia de chuva. Abri meus olhos e vi a grande maldita bola de pelos em meu peito, olhando-me como se sorrisse. Fiz arte, papai, era o que ele dizia. E do meu lado, a minha gata, Ártemis. Negra em pêlos, linda em contraste com Schrödinger. Sorria para mim. Sorria docemente como se dissesse: Bom dia, papai. Era o que ela dizia. Tive que sorrir, meus filhotes acordando-me de maneira inesperada, na manhã de um domingo que era dia de Natal.

Aninharam-se em meus braços, cada um em um. Eram apenas onze da manhã, e meus gatos me acordaram. Fazer o quê? Estiquei meu braço até a cômoda, pegando o meu maço de Marlboro e o cinzeiro. Logo o causador de Câncer em meus lábios e o isqueiro acendendo-o. Meus gatos em meus braços. A fumaça azul pairando sobre minha cabeça. Eu estou bem com isso. Sorri, dia vinte e cinco de dezembro, dia de Natal. Dois gatos. Um Marlboro. Meu aniversário. O telefone tocando. Só falta uma xícara de cappuccino. Aí terei um Natal perfeito.

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Ren.